23 de outubro de 2012

Ancestralidades: Deuses, Antepassados e Espíritos.



Não estamos sozinhos no mundo. Não estamos isolados no aqui e agora. Cada um de nós está interligado ao seu passado e futuro. Somos frutos de nossos antepassados, pais de nossos pais e mães de nossas mães, e também resultados das escolhas que tomamos em cada passo de nossas vidas. Na cultura celta e no druidismo hoje, um dos mais importantes ensinamentos se refere às ancestralidades. As três grandes famílias são formadas pelos espíritos da natureza, os antepassados e os deuses, que estão relacionadas aos Três Mundos, Terra, Mar e Céu, mas não estão limitados a apenas um deles. Essa crença está simbolizada na imagem do triskle (acima), um antigo símbolo encontrado em diversos artefatos e objetos na cultura celta, como em pedras, espadas, escudos e jóias. São três espirais que se movimentam ao redor de um centro, e todas essas espirais estão interligadas entre si, completando o círculo da vida. Você é o centro, que está conectado as espirais, recebendo influência e influenciando-as. O centro é também a essência da Vida, o Espírito, a Grande Canção, onde nascem e se expandem as espirais, e onde elas se encontram.
Abaixo veremos uma breve explicação sobre as três grandes famílias ou as três ancestralidades.

Espíritos da natureza
Refere-se a todas as formas de vida na natureza. São os espíritos dos animais, das árvores, rios, pedras, fontes etc. São nossos irmãos de penas, escamas, pêlos, e tantos outros. São os espíritos da terra, espíritos da região, e podem ser inclusive espíritos humanos que de alguma forma se integraram na paisagem natural. Em nossa região amazônica, a sabedoria popular os chama de encantados ou caruanas, e como exemplos podemos citar o Boto, a Uiara ou Mãe d’água, e Curupira.
Nós não estamos separados da natureza, e nem somos tão diferentes desses seres, os outros animais. Nós somos natureza também. Nascemos da Terra, nosso corpo é feito dela. Como alguns mitos de outras culturas, como a grega e a judaica, nos contam que nosso corpo foi criado da lama, ou seja, da mistura da água com a terra. Estudos científicos apontam que o que nos diferencia dos coelhos ou macacos, são apenas alguns genes.
O povo indígena Kamaiurá também pensa dessa maneira, como atesta a antropóloga Carmen Junqueira, no artigo “Pajés e Feiticeiros” (2004). Ela escreve a respeito de uma crença desse povo em que os seres humanos e os outros animais falavam, em um tempo remoto, a mesma língua e todos eram essencialmente semelhantes. A autora escreve:

“Quando a vida foi criada, todos os seres se comunicavam numa mesma língua, o que facilitava a união entre espécies diferentes. E, mais ainda, por trás da aparência diversa residia uma semelhança niveladora: todos eram uma concretização do fenômeno da vida e, mais, eram mortais e possuíam uma alma. O fundamento que os animava era o mesmo e a diferença de aspecto pouco significava” (p. 4).

Em um trecho de uma prece druídica a Epona, lemos o seguinte:

“Como a terra é minha carne, pedra os meus ossos, cada erva é meu cabelo, o mar meu sangue, o Sol é minha pele, minha alma a Lua, as estrelas meus sentidos, minha razão as nuvens e o vento é minha respiração”.

Logo, nós não só estamos na natureza, como a natureza está em nós.


Antepassados

Os antepassados são nossos pais e mães, tios e tias, avós, bisavós, tataravós... São nossos ancestrais de sangue e a eles devemos nossa vida e a razão de estarmos na família em que nascemos. Herdamos deles os traços físicos, a educação, a nutrição, as alegrias e as dores, e uma parte importante de nossa personalidade. Os celtas demonstravam um profundo respeito para com os antigos, os mais velhos da família e da tribo, pois eles viveram mais do que nós, viram mais do que nós e com certeza têm muito a nos ensinar. Eles representam a memória não só de uma vida, mas de uma ou mais gerações. O respeito aos mais velhos, e consequentemente a tradição e ao passado, é uma das coisas mais importantes que o druidismo ensina, e que nossa sociedade hoje mais precisa aprender. Lembrar de nossos antepassados, aqueles que já foram para o Outro Mundo e as ilhas além do Mar, respeitar sua memória, e não nos esquecer dos laços que temos com eles, são atitudes que devemos manter sempre.
Mas, não temos como nossos antepassados apenas os do laço sanguíneo. Há também os antepassados espirituais, ligados a nós, não com laços de sangue, mas de afinidade espiritual. Como druidas/druidesas e druidistas (ou politeístas celtas) temos como nossos antepassados os druidas e celtas antigos, que viveram séculos antes de nós, em terras distantes da nossa (como no nosso caso), mas que ainda assim nos influenciam e nos despertam o interesse e afinidade profunda por sua cultura e espiritualidade. São os povos gaélicos, gauleses, bretões, galeses e galaicos que viveram nas terras que chamamos de célticas (Irlanda, Escócia, Inglaterra, França, Galícia...), e que deixaram na história da humanidade profundas marcas de sua cultura, e nos inspiram hoje a (re)construir sua cultura e religião.

Deuses

Os deuses e deusas são os ancestrais mais antigos que temos. Viveram em um tempo em que o próprio tempo ainda não existia, e a Terra como a conhecemos ainda estava se formando. Os consideramos deuses porque são extremamente antigos, conhecem o(s) mundo(s) em profundidade, suas forças e seus mistérios, e por isso têm poder, porque eles são as forças do mundo, eles exprimem as forças da natureza. Muitos deuses ou deusas têm sua morada ou seu corpo formado por um rio, montanha ou colina. Alguns deuses podem ser os próprios ancestrais de uma tribo celta, que o viam como um antepassado primordial, que poderia descender mesmo de uma divindade. Se entendermos por essa forma, veremos que os deuses e deusas são nossos antepassados também. São nossos Pais e Mães primordiais e, portanto, nossa família mais antiga. A diferença é, além da ancestralidade, a enorme sabedoria que eles possuem, e também a imortalidade. No texto “Ensinamentos de Fintan”, de Bellovesos, encontra-se uma concepção muito interessante de imortalidade, e é dessa forma que compreendemos o que é ser imortal.

“A água cai do céu, corre pela terra nos leitos dos rios, descansa nos lagos, sobe nas altas ondas dos mares, retorna ao firmamento atendendo ao chamado do Sol e, quando a brilhante Grēnā assim determina, vem outra vez fazer fértil a terra. A árvore cobre-se de brotos na primavera, seus frutos amadurecem no outono, o inverno deixa-a nua e coberta de neve à espera de uma nova primavera que virá no círculo sem fim das estações. Os livros que vocês trouxeram falam de pecado, punição e morte. Não os li, não me interessam. Li o mundo. Em meu livro, a morte é porta que se abre para outro nascimento, inseparável da vida exatamente como a noite leva a um novo dia. Está escrito no mundo: tudo é passageiro na roda que começou a girar antes que o tempo existisse, que não deixará de seguir seu curso antes que o tempo acabe, pois somente aquilo que nasce dentro do tempo pode dentro dele ter fim. Imortal porque sempre renovado, vivo como o mundo vive. Por isso tornei-me testemunha de todos os reis.” (Ensinamentos De Fintan, por Bellovesos).

Deuses, antepassados e espíritos da natureza. Essas são as nossas grandes famílias. Todas interligadas entre si e conectadas a nós. Entre esses laços deve haver sempre honra, respeito e hospitalidade, e isso deve ser ensinado aos nossos filhos e aos filhos deles, pois hoje somos nós lembrando dos ancestrais e antepassados, mas amanhã nós é que seremos lembrados como antepassados de alguém ou de uma geração. Nas palavras do druida Marcos Reis (do Caer Tabebuya):

“Se deixe levar pelo sangue e ele te mostrará um caminho antigo, de nomes esquecidos, batalhas ganhas e perdidas e assim, o Rio se faz em você, e para onde ainda irá percorrer em um mundo que amanhã será ancestral de alguém”.


Meditação com os Ancestrais:

Feche os olhos, respire fundo três vezes. Veja e sinta a Terra sob seus pés, o Céu acima de você, e o Mar ao seu redor. Veja uma luz descendo do Céu tocando sua cabeça até seus pés, preenchendo seu corpo. Veja uma luz saindo do coração da Terra, subindo por seus pés e chegando até a cabeça. Veja uma luz vinda do Mar, azul e profundo, que te rodeia e preenche seu corpo totalmente. Então veja as três luzes se encontrando no seu coração, no seu centro, e formando uma espiral de luz e força. Respire fundo...
Agora veja uma árvore bela e grande. As suas raízes são fortes e se afundam no mais profundo da terra e bebem de uma água pura e cristalina. Veja na base da árvore, nas raízes, a sua família, seus parentes próximos e distantes, seus antepassados, aqueles que já se foram, e aqueles que você não conheceu nessa vida, os antigos celtas, com seus mantos quadriculados e coloridos, segurando lanças e escudos, harpas e flautas. O tronco da árvore é forte e saudável, coberto de musgo e flores. Veja no tronco da árvore todos os seres que te rodeiam, os seres de pele, de escama, de penas e folhas, os seres que voam, que andam, nadam ou rastejam. Veja a natureza como um todo, os rios, as florestas, montanhas, e sinta como há vida em tudo isso, como a natureza e os seres pulsam vida e energia. Você vê agora a copa da árvore, os seus galhos são fortes e altos que alcançam o céu e podem tocar o sol, a lua e as estrelas. Veja na copa da árvore os Deuses, os Imortais, as Forças que regem a natureza, veja Taranis, Dagda, Morrigan, Brighid, Lugh, e outros deuses a quem tens devoção.
Veja a grande árvore, veja as três grandes famílias. Agora perceba que a árvore é você. Você é a árvore. E as três grandes famílias, os Ancestrais, estão ligados a você, e você a eles. Mantenha fixa essa imagem. Agradeça e honre. Respire fundo. E abra os olhos.


(Texto utilizado na roda de conversa sobre Druidismo em maio de 2012, em Belém-PA)

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