Você acredita em fadas? Não me refiro às
fadinhas de jardim, mas sim aos seres etéreos, de fala doce e suave, que
transitam entre nós de um modo que nem sempre os percebemos. Seres que nos
falam de um mundo belo e harmonioso, isento de violência e decadência. Pois eu
não apenas acredito, mas já encontrei algumas fadas em corpo humano e elas
sempre são capazes de me emocionar. Tenho um grande respeito por elas, porque
não é fácil para elas viverem neste mundo humano denso. E me sinto grata por se
disporem a trazer sua energia perolada para diluir nossa densidade.
Se você está pensando que entrei pelo
mundo da fantasia, sugiro que você leia o livro que o antropólogo americano e
doutor em ciências sociais pela Universidade de Oxford, Inglaterra, Dr. W.Y.Evans-Wentz,
publicou em 1911. Intitulado The Fairy Faith in Celtic Countries [A Crença nas
Fadas nos Países Celtas], é o resultado de seus estudos literários e de campo a
respeito da crença popular na existência das fadas, prevalente no folclore do
mundo celta.
Na introdução à edição de 1994, Leslie
Shepart escreve que este livro “é o trabalho mais acadêmico a respeito das
fadas jamais publicado”. Em sua opinião, a história das fadas não apenas
ilumina as origens e crenças de nossos ancestrais remotos, ao comunicarem um
estado e uma atmosfera relativos à intuição, mas, principalmente, abrem a porta
para a percepção religiosa.
Portanto, eu convido vocês a mergulharem
no misterioso mundo das fadas. Não o mundo das fadas dos contos infantis, mas o
mundo do povo feérico, os antigos habitantes das ilhas britânicas, que ainda
vive nas crenças e ritos dos camponeses do País de Gales, da Irlanda, da
Escócia e da Bretanha, principalmente.
A palavra inglesa ‘fairy’ [fada] deriva
do francês antigo ‘faerie’ e do latim ‘fata’, referindo-se ao destino, no
sentido daquilo que nos está fadado. Mas como não vou falar aqui de destino,
seguirei a sugestão de R.J.Stewart, estudioso da tradição do Submundo Celta, do
qual a tradição feérica é o ramo principal, e utilizar a designação ‘feérico’
[faery] para este povo, contornando não apenas a idéia das fadas como devas da
natureza, mas também a idéia de que se trata apenas de pequenos seres
femininos.
Na concepção céltica, os seres feéricos
são seres viventes que estão a um passo, a uma mudança de percepção, da
humanidade. A tradição feérica, nas palavras de Stewart, “é o fundamento de
toda espiritualidade, religião e magia. Assim, se quisermos trabalhar para
transformar nosso planeta exaurido e abusado, é uma boa tradição para explorar
e o reino feérico é um bom lugar para começar.”
Os irlandeses nos legaram o mais antigo
documento que tenta explicar a história arcaica do povoamento de sua ilha.
Lemos n’O Livro das Invasões que a quarta e penúltima invasão ocorreu pelos
Tuatha Dé Danann, o povo da deusa Dana, que trouxeram consigo a religião, a
ciência, a profecia, a magia e os talismãs sagrados. Num trabalho magistral,
Peter Vallance, estudioso da tradição celta e exímio contador de histórias, nos
relata como os filhos da Deusa Dana vieram para moldar a Terra.
Os filhos da Deusa Dana estavam reunidos
para ouvir Bride cantar. Com sua voz celestial, ela cantou de um mundo caótico
e aterrador, uma terra envolta em águas escuras e repleta de monstros, que se
devoram uns aos outros. Aengus, o mais jovem de todos, pediu para ela parar de
cantar deste lugar, tirá-lo de sua mente como se tivesse sido apenas um sonho.
Mas Bride havia ouvido a Terra se
lamentar a noite toda, porque havia sonhado com a beleza, com a quietude do
amanhecer, com a estrela que brilha antes do nascer do sol e com a música
celestial de Bride. E porque a Terra havia sonhado com a beleza, Bride decidiu
que iria cobri-la com seu manto. Então alguns dos deuses se dispuseram a ir com
ela e limpar um lugar para ela depositar o seu manto.
Levando consigo a Espada da Luz, a Lança
da Vitória, o Caldeirão da Plenitude e a Pedra do Destino, eles desceram como
uma chuva de estrelas, com o objetivo de construir poder, sabedoria, beleza e
generosidade de coração para a Terra.
Olhando para baixo, viram a escuridão
que envolvia a Terra. Viram o fundo do abismo, onde a vida torturada nascia,
crescia e devorava a si mesma sem misericórdia. Então Nuada, empunhando a Lança
da Vitória, desceu como uma chama para a escuridão. Assim como os humanos pisam
as uvas, Manannan esmagou os monstros, até estar coberto de restos de carne e
osso. Nuada girou a Lança da Vitória em torno si, até ela se tornar uma roda
flamejante, cujas chamas e chispas transformavam a escuridão, transformando o
sangue em carmesin, em vermelho rosada, em esplendor rubiáceo.
Com o espaço limpo, Bride deitou seu
manto sobre a Terra. Ele se espalhou como uma chama prateada, fazendo recuar
tudo que estava podre. O manto teria coberto toda a Terra, se Aengus tivesse
tido paciência para esperar. Mas ele pisou com os dois pés sobre o manto e a
chama prateada transformou-se em névoa, que se ergueu à sua volta. Deliciado,
seu riso atraiu os demais, que se juntaram a ele na névoa que envolvia a todos
e os fazia parecer figuras fantasmagóricas, como em um sonho.
Então Dagda mergulhou as mãos no
Caldeirão da Plenitude e tirou um fogo verde, que ele espalhou num gesto de
semear. Ao ver o fogo verde, Aengus juntou-o e deixou que passasse por entre
seus dedos, fazendo brilhar todas as cores da luz solar: azul, violeta,
amarelo, branco, vermelho.
Enquanto Dagda semeava e Aengus brincava
com o fogo verde, Manannan viu os monstros exilados esgueirarem-se na borda do
manto de Bride. Ao ver os estranhos olhos vindos da escuridão, ele desembainhou
a Espada de Luz e avançou em direção ao caos, fazendo-o retroceder. E uma
grande onda ergueu-se no oceano, para cumprimentar a espada. Uma segunda vez
ele empunhou a espada e uma segunda onda de luz cristalina e espuma ametista e
azul se ergueu para cumprimentar a espada. E uma terceira vez Manannan ergueu a
espada e uma terceira onda, lenta, contínua, branca como cristal, se formou e
desfez, retornando para o mar.
Então Bride ergueu o manto de névoa
prateada e os seres brilhantes viram claramente a Terra em que estavam. Era uma
ilha, coberta de grama verde, com suaves colinas, banhada pelas ondas
incessantes do mar. E decidiram que esta seria sua casa. Aqui eles viveriam e
realizariam belas coisas, para que a terra ficasse feliz. Tomando a Pedra do
Destino em suas mãos, Bride a depositou na grama e ela imediatamente afundou na
terra. Uma suave música se elevou em volta, criando riachos plenos de água
cristalina, que desaguavam em lagos calmos.
Estava criado o reino feérico, o mundo
primordial, a natureza da qual nosso mundo natural se desenvolveu. E os Tuatha
De Danaan reinaram na Irlanda até o advento da quinta e última invasão pelos
Filhos de Mil, quando então se retiraram para o interior da terra, onde
permanecem até hoje nas colinas ocas.
Habitando o que é conhecido como o
‘outro mundo’, o povo feérico detém os poderes elementais formadores da terra e
para quem o mundo humano é apenas um sonho. “Assumindo invisibilidade, com o
poder de a qualquer tempo reaparecer em forma humana perante as crianças dos
Filhos de Mil, o Povo da Deusa Dana se tornou o Povo Feérico, os Sidhe
[proununcia-se 'xi'] da mitologia e romance irlandeses. Por isto que hoje a
Irlanda contém duas raças – uma raça visível que chamamos de celtas e uma raça
invisível que chamamos de fadas”, escreve Evan-Wentz.
Também conhecidos como o Bom Povo, os
Sidhe são formados por vários grupos ou ordens, distintas umas das outras, mas
que funcionam como uma coletividade, mais próximo do funcionamento de uma
colméia. Possuem uma inteligência uniforme, que encontra sua expressão máxima
na figura da rainha ou do rei de cada ordem, os expoentes das qualidades e
poderes inerentes a todo o povo feérico.
Os antigos povos celtas concebiam a vida
como existindo em três níveis distintos, integrados e presentes em cada ser.
Estes três níveis eram os mundos físico, mental e espiritual. “Nas crenças
celtas, a verdadeira visão do espírito só pode ser alcançada quando você
encontra a harmonia central de corpo, mente e espírito” afirma McSkimming, pois
o espírito não apenas existe em planos superiores, mas existe em tudo.
Quando percebemos estes três mundos
entrelaçados, fica mais fácil compreender o conceito de ‘outro mundo’, esta
dimensão em que vive o povo feérico, como estando dentro e em volta de nós.
Somos parte dele e ele é parte de nós. Precisamos apenas deslocar nossa
percepção, para entrar em contato com ele. ”Uma vez que realizamos esta mudança
de percepção, toda nossa percepção de outras criaturas viventes também muda”,
escreve Stewart em The Living World of Faery [O mundo vivo das Fadas].
Você não quer tentar?
Referências
L. MacDonald, O povo dos outeiros –
artigos sobre os Sidhe. Dalriada Magazine, 1993
S. McSkimming, O Outro Mundo na crença
popular celta. Dalriada Magazine, 1993
R.J. Stewart, Earth Light [Luz da Terra]. 1992
R.J. Stewart, The Living World of Faery [O mundo vivo das fadas]. 1995
W.Y. Evans-Wentz, The Fairy-Faith in Celtic Countries [A crença nas
fadas nos países celtas]. 1989
Fonte: www.monikavonkoss.com.br
Imagem utilizada no texto: "Lady of the wood" (de Sean Domega).
Nenhum comentário:
Postar um comentário