28 de dezembro de 2012

20. Oração

“Na profundidade do centro tranquilo do meu ser,
que eu possa encontrar a paz.
Silenciosamente dentro da quietude do Bosque,
que eu possa partilhar a paz.
Suavemente dentro do grande círculo da humanidade,
que eu possa irradiar a paz”.
(Prece Druídica da Paz, da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas, proferida nas luas cheias).

Há poucos minutos olhei pro céu e vi a lua, cheia, brilhante e perolada, já despontada no horizonte. As nuvens em volta banhadas pelo luar formando uma cena digna de um quadro... Fechei os olhos, busquei na memória as palavras certas e proferi a prece acima transcrita. Troquei uma ou outra palavra, culpa da memória falha. Pensei comigo, “ainda preciso decorar melhor a prece”. Mas o importante é que ela foi dita e a intenção de paz para mim e para o mundo foi lançada, juntando-se agora à corrente de intenção lançada por outros que disseram as mesmas (ou semelhantes) palavras. Mais tarde, ainda em tempo, realizarei uma singela celebração de solstício de inverno, sendo basicamente um emaranhado de orações e oferendas, para honrar o período do ano mais chuvoso nas terras amazônicas e agradecer pelo ciclo que finda.


Sabemos que a oração compunha grande parte da prática religiosa dos celtas (e de muitos outros povos antigos), e o Carmina Gadelica está aí para nos demonstrar isso, apesar de tratar-se de preces coletadas séculos depois do auge das culturas celtas, é notória a herança cultural desses povos nelas contidas. Oração para saudar e se despedir do sol, oração para iniciar o trabalho, para iniciar uma viagem, para pedir cura, para abençoar a casa, para acender a lareira, para abençoar a comida, e tantas outras orações com as mais diversas finalidades.

O Carmina Gadelica é uma boa fonte de inspiração para compormos preces para nossa prática religiosa, filtrando, claro, as influências cristãs ali presentes. Mas a melhor fonte de inspiração para as orações não pode ser outra se não a própria inspiração, a espontaneidade e criatividade surgidas em momentos de meditação e introspecção.

Alguns gostam de proferir orações em línguas célticas, e outros em português mesmo. Alguns gostam de usar palavras rebuscadas, e outros preferem a simplicidade. Alguns gostam de recitar ou declamar as orações, outros preferem falar baixinho, apenas ao vento, ou ainda entoá-las como canções. A preferência aqui vai de cada um e garanto que todas são válidas. O importante mesmo é sentir-se a vontade no momento e carregar de emoção as orações. Não adianta nada recitar aos quatro ventos uma oração linda, rimada e extensa, se não houver sentimento e forte intenção no seu peito. Os Deuses e espíritos compreendem muito mais nossa mensagem por meio de nossas emoções e pensamentos do que por palavras secas e decoradas. Também não há a necessidade de gestos e “performance” ritualística se isso te faz ficar mais preocupado com a posição certa das mãos do que com as palavras que brotam no seu coração. Obviamente que uma coluna reta e uma posição confortável ajudam na concentração.

O que quero dizer é que você não precisa dizer uma oração, inclusive como a transcrita acima, só porque foi criada pelo druida tal ou encontrada em uma inscrição antiga na porta de um templo antigo da Gália no período galo-romano antigo (rs), se as palavras não te fazem sentido ou não te emocionam. Eu gosto dessa oração criada pela OBOD, sinto que a alma dessas palavras tem poder, mas pode ser que você ou alguém não sinta, e não há problema nisso, e caso também queira participar dessa “corrente” de paz você pode perfeitamente proferir uma oração criada por você mesmo, ali no momento de espontânea inspiração ou escrever previamente a prece. O que importa é a intenção/emoção que você imprime nas palavras e os pensamentos que mantêm durante aquela hora sagrada. É o que quer dizer a druidesa Emma Restall Orr ao afirmar que no Druidismo a comunicação se dá de “espírito para espírito”. Comunicamo-nos com os Deuses e seres sagrados por meio da oração, canção e oferendas, e eles se comunicam conosco por meio da Inspiração (a Awen ou Imbas), dos oráculos, “sinais” e presságios na natureza.

26 de dezembro de 2012

19. Magia

"Creio na prática e na filosofia daquilo que convencionamos chamar de magia; creio no que devemos chamar de evocação dos espíritos - ainda que eu não saiba qual a sua natureza; creio no poder de gerar ilusões; nas visões da verdade no mais profundo da mente quando os olhos estão fechados. E creio em três doutrinas que foram, penso eu, transmitidas desde tempos remotos, e que constituem os alicerces de quase todas as práticas mágicas.

Tais doutrinas são:
1) que as fronteiras de nossas mentes estão sempre em movimento, e que muitas mentes podem mesclar-se umas às outras, por assim dizer, para criar ou revelar uma única mente, uma única energia;
2) Que as fronteiras de nossas memórias também estão em movimento, e que nossas memórias são parte de uma memória maior - a memória da própria Natureza;
3) Que essa grande mente e essa grande memória podem ser evocadas através de símbolos." – W. B. Yeats.


Seria legal se os magos da realidade fossem iguais aos dos filmes, como em Harry Potter e Senhor dos Anéis. Os mais desinformados começam a estudar paganismo ou “bruxaria” (prefiro não usar esse termo, é muito pejorativo) achando que irão aprender feitiços para mudar o tempo, levitar objetos etc. Só que não. Até que seria legal se pudéssemos arrumar a casa ou fazer comida com um simples balançar da varinha... Mas não é assim que a coisa que funciona. O que não quer dizer que por conta disso a vida perdeu o encanto.

Os antigos enxergavam (e nós, pagãos na atualidade, buscamos essa visão) a vida plena de magia. Nenhum pôr-do-sol é o mesmo que o anterior, nenhuma rosa é igual a outra, e nenhum passarinho canta igual ao outro. Há singularidade em cada momento de nossas vidas, em cada lua, em cada amanhecer, em cada sonho.
Os antigos imbuíam de magia cada ato importante. Ao raiar do dia dizia-se uma prece, ao preparar um pão recitava-se uma canção, ao limpar a casa centrava-se os pensamentos e ao acender a lareira proferia-se determinada oração. Mas se olharmos um pouco esses atos importantes eram na realidade cotidianos. Então todos os dias e toda ação eram mágicos, porque estavam imbuídos de gestos rituais, tornando-os sagrados. Esse modo de viver preenchia a vida com um encantamento e sentimento de plenitude que hoje nos são raros e extremamente necessários em nossa sociedade.

Eu entendo que magia é como estar seguindo livremente e harmoniosamente o fluxo de um rio, sem impedimentos, sem apegos, sem pesares... É seguir junto a correnteza, para onde quer que o rio nos leve. Na verdade, não estamos só seguindo o fluxo do rio, somos o próprio o rio. Magia não é mudar, mas seguir o curso da vida, adaptar-se e aproveitar da melhor maneira as oportunidades que surgem em cada curva, descida, subida ou obstáculo no caminho do rio. E com isso realidades podem ser transformadas e desejos alcançados.

(imagem de Lisa Hunt)

Viver com magia é estar em sintonia com os rumos da Vida, e por isso as coisas simplesmente acontecem. É estar aberto, receptível para as dádivas e sinais dos Deuses, e estando abertos saberemos o momento certo de agir e como agir. É por isso que para mim magia tem um pouco a ver com sorte. Pessoas destoantes do fluxo do rio, ou seja, amarguradas, presas em sentimentos ruins, achando que nada de bom lhes acontece e que todos estão contra ela, atraem exatamente esses acontecimentos.

Magia é enxergar as minúcias da vida, a teia por trás dos acontecimentos, e enxergando a teia podemos não só compreende-la, mas também interpretar, prever e transformar o rumo dos acontecimentos. E isso implica não só em um privilégio, uma dádiva, mas, sobretudo, uma responsabilidade em agir da melhor forma para o bem comum ou de pessoas envolvidas.
Quando vivemos com magia nos conectamos a algo muito maior, que gosto de chamar de Grande Teia ou Alma do Mundo, sendo a intuição (ou inspiração) aquilo que nos liga a ela. É por isso que podemos pressentir algo que está para acontecer, pois nos entrelaços da teia a coisa de certa forma já aconteceu.

Magia é enxergar além do que os outros conseguem ver. E por isso o mago, druida ou sábio é considerado meio louco pelos que não veem nem entendem o que ele vê. E apesar de toda a complexidade que a Grande Teia pode representar, quem vive com magia se encanta com a simplicidade que dela pode sair. O nascer de uma planta entre o asfalto da rua, o poente em tons de rosa e laranja escorrendo pela brecha da janela, o vento que bagunça o cabelo e traz a lembrança de algo querido, a lua mostrando sua face entre as nuvens, o brotar de uma semente na terra, a risada gostosa de uma criança, o afago carinhoso de quem se ama.

Quem nunca acordou de um sonho intenso com a certeza de alguma mensagem ali contida? Quem nunca escreveu um poema ou texto cujas palavras pareciam ter simplesmente surgido inteiras na mente? Quem nunca pensou numa pessoa e instantes depois recebeu uma ligação ou mensagem dessa mesma pessoa? Quem nunca olhou pro céu e sentiu lá no fundo da alma que aquela noite era mágica? Quem nunca se pegou cantarolando uma canção criada ali na hora pela própria espontaneidade e leveza do coração? Quem nunca ouviu uma música até então desconhecida, mas ao mesmo tempo tão familiar e que toca o mais fundo da alma? ... Quem nunca?
Isso para mim é magia. E magia talvez seja a essência do universo. Essência essa tão invisível, mas ainda assim tão perceptível, forte e presente em todo o lugar. 

24 de dezembro de 2012

18. Ciência e Filosofia

Foi-se o tempo em que a religião monopolizava o conhecimento, e também findou a era em que a ciência se auto-supervalorizava perante outras formas de saberes. Não há mais razão para uma excluir ou ignorar a outra. O extremismo da religião é o fanatismo cego, e o da ciência o ceticismo insensível. Seja para que lado a balança pesar mais, sempre haverá desequilíbrio e visões tortas da realidade.

A cada dia a sociedade se aproxima de um novo paradigma, que alguns sociólogos (como Boaventura de Sousa Santos) e filósofos (como Marilena Chauí) chamam de pós-moderno, onde as fronteiras entre a ciência e a religião, a razão e intuição, são tênues e fluidas. As áreas de conhecimento, antes fechadas em si mesmas, dialogam cada vez mais e compartilham ideias, conceitos e perspectivas. A medicina, a religião, a arte, a história, antropologia, sociologia, filosofia, biologia, entre outras ciências, de uns anos para cá têm dialogado profunda e positivamente, sem, no entanto, romper suas próprias fronteiras. E isso é bom, pois acarreta consequências positivas tanto para essas ciências quanto para as sociedades. Claramente, esse é um processo lento e que ainda enfrenta resistências de correntes fundamentalistas (tanto cientificas quanto religiosas), mas cada vez mais nos aproximamos desse novo paradigma.

É possível que esse novo paradigma esteja relacionado com a Nova Era dos místicos modernos, que para alguns se iniciou nesse último dia 21 de dezembro de 2012, a mudança de ciclo no antigo calendário maia. Seja como for, essa visão holística do mundo, de que tudo está relacionado e que a realidade não pode ser vista sob apenas uma perspectiva não é nova para o Druidismo e nem para as culturas tradicionais, como as indígenas. Acho que é por isso que nunca li a teoria do “big bang” ou a teoria das cordas ou ainda a hipótese de Gaia com espanto, pois de certa forma já sabia daquilo, só que de outra forma, claro. Você conhece o livro “O Tao da Física”, de Fritjof Capra? É bastante interessante e sugiro a leitura.

A ciência e a religião não são nada mais do que linguagens diferentes para explicar o mundo a nossa volta. Uma possui uma linguagem mais objetiva, e a outra mais subjetiva ou simbólica, mas ambas são válidas e comumente falam exatamente a mesma coisa, só que com termos e palavras diferentes. Só mesmo um cego para não perceber isso...

É incentivada no Druidismo uma formação acadêmica de seus adeptos, mas NÃO é algo obrigatório. De certa forma, hoje está cada vez mais fácil possuir uma graduação, pois o ingresso no ensino superior está mais acessível, e também é quase que inato em um druida ou politeísta celta a sede pelo conhecimento, já que o caminho do Druidismo e Reconstrucionismo Celta nos exige muito, mas muito estudo. Só temos que, com graduação ou sem graduação acadêmica, ter o cuidado para não pender demais para um lado, nem ser cientista demais ao ponto de nos tornar céticos e cegos à beleza da natureza, nem religioso demais que nos torne fanático. O equilíbrio, como sempre, é fundamental.

23 de dezembro de 2012

17. Ética

(Imagem de Jenny Dolfen)

“Não faças a outrem, o que não queres que façam a ti”. Essa máxima é de Confúcio, e vale com certeza para todo e qualquer indivíduo. Se todos aplicassem em suas vidas, muito provavelmente teríamos uma sociedade melhor. E isso cabe tanto para as relações entre humanos quanto entre humanos e outros animais, e humanos e natureza.
Uma pessoa que diz fazer o bem para outro ser humano, mas que maltrata um gato ou cachorro, por exemplo, é no mínimo hipócrita e de caráter um tanto duvidoso. Ser ético diz respeito não só aos seres humanos, mas a todos os seres que compartilham do mesmo planeta.

Uma tríade celta, que gosto muito, diz: "Honrar os Deuses, não fazer o mal, agir com bravura". No Druidismo, semelhante no Asatru Vanatru (paganismo nórdico), temos a ideia das Virtudes que todos, druidas ou não, devem cultivar.
Em um texto gaélico do século VII, chamado “Audacht Morainn” são mencionadas 15 virtudes: compaixão, veracidade, imparcialidade, responsabilidade, constância, generosidade, hospitalidade, cortesia, firmeza, benevolência, aptidão, confiabilidade, eloquência, serenidade, precisão no julgar. Algumas dessas virtudes podem ser unidas em uma só, pois estão profundamente ligadas, como a hospitalidade, generosidade e cortesia, e também compaixão e benevolência. Dessa forma foram elaboradas as 9 Virtudes no Druidismo, conhecidas como Verdade, Honra, Excelência, Justiça, Hospitalidade, Coragem, Lealdade, Piedade religiosa, Respeito. É possível encontrarmos variações de uma ou outra virtude, mas a ideia é basicamente a mesma. De todo modo, são virtudes esperadas tanto de um druida quanto de um devoto.

Mas acho que não existe melhor texto da cultura celta que exprime a ética no Druidismo (e que devemos todos seguir) como “As Instruções de Cormac”, do Livro de Ballymote, e por isso a transcrevo a seguir:


As Instruções de Cormac
Do Leabhar Bhaile an Mhóta (Livro de Ballymote). Tradução de Bellouesos Isarnos.

Ethne deu a Cormac um filho, seu primogênito, Cairpre, que foi rei de Ériu depois de Cormac. Foi durante a vida de Cormac que Cairpre subiu ao trono, pois ocorreu que, antes de morrer, Cormac foi ferido por uma lança e perdeu um dos olhos e era proibido que qualquer homem com um defeito fosse rei em Ériu. Assim, Cormac entregou o reino nas mãos de Cairpre, mas, antes de fazê-lo, transmitiu a seu filho toda a sabedoria que possuía no governo dos homens e isso foi anotado em um livro chamado As Instruções de Cormac. Estas palavras encontram-se entre seus ensinamentos:

- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairbre -, quais são os deveres de um chefe numa taverna?
- Não é difícil dizer -  disse Cormac.
- Bom comportamento em volta de um bom chefe,
Luzes para as lamparinas,
Esforçar-se pelo grupo,
Distribuição adequada de assentos,
Generosidade dos distribuidores,
Mão ágil ao servir,
Atendimento solícito,
Música com moderação,
Narrativas curtas,
Semblante jovial,
Amável saudação aos convidados,
Durante récitas, quietude,
Cantorias harmoniosas.

- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairbre -, quais teus costumes quando eras um rapaz?
- Não é difícil dizer – falou Cormac.
- Eu escutava nas florestas,
Fitavas as estrelas,
Era cego a respeito de segredos,
Silencioso nos ermos,
Palrador no meio da multidão.
Moderado no salão de festas,
Duro no combate,
Cortês para com os aliados,
Um médico para o enfermo,
Fraco para com o débil,
Forte para com o poderoso,
Não era íntimo para não me tornar inconveniente,
Não era arrogante, embora fosse instruído,
Conquanto capaz, não era dado a prometer,
Não era temerário, embora fosse rápido,
Conquanto fosse jovem, não zombava dos velhos,
Não era jactancioso, embora fosse bom lutador,
Não falaria de alguém em sua ausência,
A vituperar eu preferia exaltar,
A pedir eu preferia dar,
Pois é com tais costumes que os jovens tornam-se maduros e nobres guerreiros.

- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairbre -, qual é a pior coisa que tens visto?
- Não é difícil dizer: – falou Cormac – as faces de inimigos no tumulto da batalha.
- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairbre -, qual é a mais doce coisa que tens ouvido?
- Não é difícil dizer: – falou Cormac – o grito de triunfo depois da vitória, louvor depois dos esforços, o convite de uma dama para seu leito.

- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairbre -, que é o pior para o corpo de um homem?
- Não é difícil dizer: – falou Cormac – sentar-se por muito tempo, ficar muito tempo deitado, esforçar-se além das próprias forças, correr demais, saltar demais, cair muitas vezes, dormir com a perna por cima da grade da cama, olhar brasas acesas fixamente, cera, colostro de vaca, cerveja nova, carne de touro, comida azeda, comida seca, água do brejo, levantar-se muito cedo, frio, sol, fome, beber demais, comer demais, dormir demais, pecar demais, tristeza, subir uma elevação correndo, gritar contra o vento, secar-se ao fogo, o orvalho do verão, o orvalho do inverno,  remexer cinzas, nadar de barriga cheia, dormir de barriga para cima, fazer brincadeiras idiotas.
       
- Ó Cormac, filho de Conn – disse Cairpre – quais são o pior pedido e a pior argumentação?
- Não é difícil dizer – falou Cormac.
-  Combater contra o conhecimento,
Argumentar sem provas,
Escudar-se em linguagem imprópria,
Uma elocução tensa,
Falar resmungando,
Excesso de minúcias,
Provas duvidosas,
Desprezo aos livros,
Voltar-se contra os costumes,
Mudar o pedido,
Instigar a ralé,
Soprar a própria corneta,
Berrar a todo pulmão.

- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairpre -, quem são os piores com quem podes fazer uma comparação?
- Não é difícil dizer – falou Cormac.
- Um homem com o descaramento de um satirista,
Com a belicosidade de uma escrava,
Com a negligência de um cão,
Com a consciência de um patife,
Com a mão de um ladrão,
Com a força de um touro,
Com a respeitabilidade de um juiz,
Com saber engenhoso e perspicaz,
Com o discurso de um homem majestoso,
Com a memória de um historiador,
Com o comportamento de um abade,
Com  o juramento de um ladrão de cavalos,
E sendo inteligente, mentiroso, grisalho, violento, blasfemo, falastrão, quando diz: “a questão está decidida, eu juro, jurarás também.”

- Ó Cormac, neto de Conn – disse Cairbre – desejo saber como devo comportar-me entre os sábios e tolos, em meio aos amigos e estranhos, entre os jovens e os velhos, em meio aos inocentes e perversos.
- Não é difícil dizer – falou Cormac.
- Não sejas muito douto, não sejas muito néscio,
Não sejas muito presunçoso, não sejas muito acanhado,
Não sejas muito orgulhoso, não sejas muito humilde,
Não sejas muito falador, não sejas muito silencioso,
Não sejas muito rígido, não sejas muito débil.
Se fores muito douto, esperar-se-á muito de ti.
Se fores muito néscio, serás enganado.
Se fores muito orgulhoso, acreditar-te-ão molesto.
Se fores muito humilde, serás sem honra.
Se fores muito falador, não te darão atenção.
Se fores muito silencioso, não serás  estimado.
Se fores muito rígido, serás quebrado.
Se fores muito débil, serás esmagado.

Aqui terminam as Instruções de Cormac Ulfada, filho de Art, filho de Conn Cétchathach, filho de Óenlám Gaba, filho de Tuathal Techtmar, filho de Feradach Findfechtnach, filho de Crimthann Nia Nár, filho de Lugaid Riab nDerg, filho de Bres, Nár and Lothar, filhos de Eochaid Feidlech, filho de Find, Grande Rei de Ériu, que o filho de Art deu a seu primogênito, Cairpre Lifechair.

22 de dezembro de 2012

16. Poesia

Canto o Caldeirão do Movimento,
graça compreensível,
conhecimento reunido,
fluente inspiração poética como o leite do peito,
é o auge da maré do conhecimento,
união de sábios,
correnteza de soberania,
glória dos humildes,
maestria das palavras,
rápido entendimento,
sátira enrubescedora,
artesão de histórias,
cuidando dos alunos,
procurando princípios obrigatórios,
distinguindo as complexidades da linguagem,
movendo-se rumo à música,
propagação da boa sabedoria,
nobreza enriquecedora,
enobrecendo os não-nobres,
exaltando os nomes,
relatando louvores
por meio do trabalho da lei,
comparação de dignidades,
a bebida nobre em que é fervida
a raiz verdadeira de todo conhecimento,
que entrega em razão do respeito,
que cresce em razão da diligência,
cujo êxtase poético põe em movimento,
cuja alegria vira,
que é revelado por meio da tristeza,
proteção que não diminui,
canto o Caldeirão do Movimento.

(Caldeirão da Poesia, atribuída a Amhaergin, tradução de Bellovesos)


Só mesmo uma pessoa muito insensível ou ignorante para não gostar de poesia. Nem todos possuem dom para escrever poesia, mas todos apreciam ler ou ouvir uma.
Melhor do que a prosa, a poesia consegue expressar os sentimentos, sensações e intuições de forma magnífica e profunda, justamente porque a linguagem de todas elas é a mesma, a simbólica.

Acho que não existe uma religião que dê tanto destaque a poesia (ou a arte, em geral) e a quem a escreve como o Druidismo. Os bardos ou fíli eram (e são) aqueles que, depois de passar por um longo treinamento de memorização e estudos, detinham a memória de várias poesias e histórias da comunidade. Guardavam-nas no “Santuário que Preserva” e também criavam novas poesias e contos sob a inspiração sagrada.
Quem pensa que é fácil escrever uma poesia verdadeira engana-se. Tente transformar em palavras seus sentimentos mais profundos e intuições mais remotas... Só mesmo sob a luz da inspiração e sabedoria é que surgem as palavras certas e plenas de verdade que irão compor a poesia. E era (é) essa inspiração e sabedoria que os bardos buscavam sempre que precisavam de respostas e orientações; encontrar e acessar a Inspiração fazia parte de seu treinamento.

Há um texto medieval irlandês atribuído a Amhaergin como autor, chamado de Caldeirão da Poesia. Nesse texto-poema fala-se sobre três caldeirões que existem em todo ser humano e são o Caldeirão da Incubação, do Movimento e da Sabedoria. A posição deles pode estar de lado, invertida ou para cima, dependendo muito do momento em que o indivíduo está vivendo e, principalmente, de seus sentimentos, ou seja, a alegria e tristeza. Se estivermos alegres os caldeirões se movimentarão para cima e isso é bom, pois a inspiração pode circular livremente por eles e transbordar para nossa alma e corpo. Se estivermos tristes, eles emborcarão e isso é ruim, pois dificulta a circulação da inspiração/energia e pode provocar doenças emocionais e físicas.

Acredito que a arte, em especial a poesia e a música, seja a linguagem por excelência do Sagrado. É pela arte sagrada que os Deuses, Antepassados e Seres da Natureza se comunicam com a gente, e que nós nos comunicamos com eles. Não é por acaso que a divindade era chamada de Óran Mhor, a Grande Canção, no cristianismo irlandês. E também não é a toa que num ritual ou festival celta, antigo e moderno, a presença da música, dança e poesia é tão forte.

18 de dezembro de 2012

15. Histórias


"Creio que a imaginação pode mais que o conhecimento. Que o mito pode mais que a história. Que os sonhos podem mais que os fatos. Que a esperança sempre vence a experiência. Que só o riso cura a tristeza. E creio que o Amor pode mais que a morte" (Robert Fulghum).

(imagem extraída do site alfsaga.com)

Quem não gosta de ouvir uma boa história? Seja de amor, terror ou engraçada? Ou tudo isso junto?! Quando era mais nova e faltava luz em casa, eu e minhas irmãs acendíamos umas velas e contávamos histórias de visagens. Dava medo, mas era muito divertido. Quando viajávamos em família nas férias para o interior do estado, especificamente para Ponta de Pedras (Ilha do Marajó-PA), à noite costumávamos sentar na frente da casa e conversar com os parentes e vizinhos. A conversa era sobre de tudo um pouco, desde fofocas, piadas, trabalho e amor até os “causos” de visagens e assombrações da região. Acho que não há nada mais gostoso do que se reunir com amigos e parentes e conversar, compartilhar, tecer ideias e saberes. Dos povos mais antigos até os contemporâneos fazem isso, tendo uma fogueira no centro ou nada, simplesmente o entrecruzar dos olhares e falas.

Entre os celtas existiam os bardos ou fíli, exímios contadores de histórias, conhecedores das linhagens antigas, menestréis e poetas. Para os guerreiros era uma grande honra terem seu nome cantado na música ou poesia de um bardo, e para os reis era sinal de prestígio e longa memória ao seu legado serem lembrados nas canções. Uma desonra ou desrespeito cometido contra a tribo, a terra ou a um bardo traria péssimas consequências ao indivíduo que o fizesse. A força de uma palavra para os celtas era maior do que a força de uma espada.

Para conhecer uma cultura conheça os seus mitos, pois os mitos falam muito da cultura e do povo em questão. Nos mitos podemos encontrar as crenças de um povo, as divindades que cultuavam, as leis que regiam a sociedade, os costumes, os ritos, entre outras coisas. Por isso, é impossível estudar o Druidismo sem estudar os mitos celtas, ou seja, mitos gaélicos, gauleses, galeses... Pois mesmo que a grande maioria tenha sido escrita na era cristã, o legado cultural celta é claramente perceptível nas entrelinhas desses mitos. Hoje em dia, graças aos Deuses e aos druidas e druidistas que se dispuserem ao trabalho, encontramos muitos mitos traduzidos para o português (que você pode encontrar, inclusive, em alguns sites sugeridos numa lista à direita desse blog). Muitos, porém, ainda estão escritos em gaélico (irlandês), latim, inglês ou francês. E grande parte desses mitos está disponível em livros e na internet.

Alguns druidistas e/ou bardos do Druidismo ou RC hoje realizam cursos de formação em Contação de histórias, o que é uma ideia bem legal para aprimorar ou adquirir essa habilidade. Embora eu acredite que todos nós sejamos contadores de histórias, há aqueles que nascem com um dom pra coisa e outros que podem desenvolver ao longo da vida. De qualquer forma, contar histórias é um dos hábitos mais antigos da humanidade e sua função é desde entreter até transmitir uma grande verdade. Pois como dizem, o mito é uma verdade que nunca foi, mas que sempre é.

Foi-se a ideia de que mito é uma história sem sentido e fantasiosa da realidade. Quem pensa assim está totalmente desinformado. Sabe-se há muito que os mitos revelam uma outra visão sobre a realidade que nos cerca. Uma visão mais simbólica, complexa e intricada de significados. E não é por que sua linguagem é simbólica e mítica que deve ser ignorada, muito pelo contrário, é através dela que encontraremos muitas vezes as respostas mais profundas para nossos sonhos e medos. 

"Muitos creem que os humanos criaram as divindades, e que podem desfazê-las novamente; mas nós, que as vimos passar com seus arreios tilintantes e trajando túnicas suaves, nós que ouvimos suas vozes articuladas enquanto permanecíamos como que em transe mortal, sabemos que eles estão constantemente criando e desfazendo a humanidade" (William Butler Yeats, em Rosa Alchemica).

16 de dezembro de 2012

14. Meditação


Grande parte de um ritual acontece por meio de meditações (no sentido de visualizações). Em outras palavras, um ritual é 70% interno (visualização, concentração, visões, intuições, sensações) e 30% externo (gestos ritualísticos, oferendas, preces, encantamentos). E muito da vivência diária de um druida ou druidista é baseada em práticas de meditação e contemplação, pois é muitas vezes dessa forma que nos chega a inspiração.

Acredito que a meditação não era desconhecida entre os celtas, embora possivelmente tivesse outra denominação e sentidos. A imagem de Cernunnos no Caldeirão de Gudenstrup nos remete levemente a uma postura meditativa. Há um texto medieval irlandês que diz que nas casas de cura, depois do banho de vapor, as pessoas doentes eram incentivadas à prática de dercad (contemplação), para alcançar um estado de paz. 

A meditação no Druidismo não é só aquele ato de sentar-se, aquietar a mente e deixar que os pensamentos e ideias surjam trazendo mensagens para o momento. Pode ser também a entoação de palavras sagradas que nos levam a um estado profundo de quietude e concentração; pode ser uma dança circular, que age como uma meditação ativa; e pode ser também a simples contemplação de algo, como a chama de uma vela, o balançar das folhas nas árvores ou as nuvens no céu, que nos induz a um estado profundo de consciência.

Em um mundo onde a pressa é estimulada e a “perda de tempo” é criticada, ficamos cada vez mais estressados e distantes da quietude necessária a nossa saúde mental, física e espiritual. Por isso é importante dedicarmos algumas horas por dia para nós mesmos, para meditar, plantar, ouvir uma música preferida ou apenas dormir. Pois como já disse um sábio, dormir é fechar os olhos para o mundo de fora e despertar para o mundo de dentro. E o mesmo acontece quando meditamos.

13. Inspiração

("Rio que flui"; Awen; Inspiração; Sabedoria fluindo; Águas sagradas que renovam a alma)

Foi o que pedi aos Deuses ao iniciar os 30 Dias druídicos e é o que peço sempre que me sento na frente do computador para escrever um texto. Geralmente ela vem... às vezes não na hora em que peço, mas vem.
Inspiração no Druidismo equivale praticamente à Sabedoria, e essa ideia nos é tão cara quanto é a salvação para os cristãos ou a iluminação para os budistas.
A imagem/símbolo do rio que flui é associada a inspiração, pois é o curso do rio fluindo em liberdade, sem estagnações, sem impedimentos. É a sabedoria dos deuses fluindo livremente em nossas almas, e a voz dos ancestrais soprada em nossos ouvidos.
A palavra xamã inclusive tem origem na língua tungue, "shaman", e quer dizer aquele que é inspirado pelos espíritos. Os druidas, vates e fíli, ou seja, os sábios e místicos celtas eram considerados indivíduos inspirados pelos espíritos. Os romanos escreveram que acreditavam-se que os druidas entendiam e falavam a língua dos deuses.

A inspiração nos chega por diversos meios, assume diversas linguagens e esclarece diversas questões. Uma frase lida num livro ou jornal, o canto de um pássaro, uma conversa com um amigo ou parente, os minutos durante o banho, os sonhos, uma meditação, uma consulta a um oráculo, o nascer da lua, o som do mar... Na verdade, essas coisas são apenas o canal para a inspiração brotar em você, e você precisa estar inteiramente aberto à ela, de ouvidos atentos e coração receptivo. Uma pessoa cética demais, estressada, deprimida ou irada dificilmente vai ouvir a voz dos deuses, e se ouvir não vai entender ou vai até mesmo ignorar.
  
Quando recebemos uma inspiração geralmente precisamos colocá-la em prática, pois sabedoria retida é como a água parada. É um caldeirão que transborda e o que transborda precisa de algum destino, alguma função. É então que escrevemos poemas, canções ou textos, pintamos um quadro ou fazemos um desenho a lápis, criamos artesanato a partir de materiais ao nosso alcance, fazemos uma comida depositando nosso amor e dedicação, e tantas outras coisas, que só quem está inspirado sabe o que e como fazer. Estar inspirado no Druidismo não é só um estado momentâneo, é algo a ser mantido constantemente. Devemos  buscar não só estar inspirados, mas Ser inspirados, para que possamos sempre ouvir a voz dos Antigos e transmiti-la aos que estão a nossa volta e ao mundo sempre que necessário. E nos últimos tempos tem sido muito necessário.

Qualquer pessoa pode receber inspiração, basta estar atenta e aberta para percebê-la e compreendê-la. Pode vir como uma simples intuição, um pensamento ou uma ideia para alguma questão de sua vida, ou pode vir num sonho, num conselho de um amigo, parente ou desconhecido, ou enquanto sua mente estiver divagando, distraída ou mesmo fervilhando entre mil pensamentos, ou ainda ao observar o voo de um pássaro ou escutar uma doce melodia. A questão é se você está atento ao que os Deuses estão te dizendo.

A música "Song of Awen", do Damh the Bard, é perfeita e diz maravilhosamente o que queria dizer nesse texto, mas acho que não consegui achar as palavras nem a forma certa... Ouçamos a música, pois, e que a Inspiração toque nossas almas e corações hoje e todos os dias, do anoitecer ao amanhecer, e do amanhecer ao anoitecer. 


14 de dezembro de 2012

12. Roda do Ano


O Rei Sol é coroado, as águas se recolhem e o calor domina.
A Mãe da Mata recebe o Sol entre suas folhagens, e o abraça como quem abraça um amante. Seu doce e quente amante...
Ele aquece a terra e derrama sobre seu corpo belo e fecundo beijos de luz e águas do céu, que correm pela terra e trazem bençãos ao mundo.
O calor e o poder, entretanto, tornam nosso rei tirano.
A Mãe da Mata sente cada vez mais a secura do tempo e o fogo do Sol. Ela clama pela ajuda de seu outro amado amigo, que reunia forças enquanto reinava o Sol.
O Rei das Águas agora mais forte depois da derrota passada desafia o Rei Sol e almeja recuperar a coroa, e também os beijos de sua amada.
Secretamente a Mãe da Mata apoia o Rei das Águas, pois nada justifica a tirania do Sol. Gente e bicho já não suportam tanto calor, e todos suplicam pela ajuda do Rei das Águas, a quem Mãe da Mata agora dedica seu amor.
Portando sua lança-trovão, o Rei das Águas tem o poder das tempestades e envia nuvens de chuva para esconder a luz do Sol, assento do velho rei e fonte de seu poder.
O Rei Sol apesar de cansado ainda resiste à batalha, mas não por muito tempo. O Rei das Águas é forte e jovem, é moço bonito e determinado a tomar a coroa.
Depois de muitas lutas entre o Sol e a Chuva, o Rei das Águas vence e o Rei Sol se recolhe à sua morada. Deixa a Mãe da Mata, triste e derrotado, mas no fundo sabia que uma pausa precisava.
Gente e bicho comemoram e saúdam o novo rei. É tempo das águas grandes, chuvas fortes e refrescantes!
O Rei das Águas é coroado, o sol se esconde entre as nuvens, mas ainda tem forças e espia lá de cima. E os rios, antes finos e secos, agora se enchem em abundância.
A Mãe da Mata recebe seu amado entre as folhas e raízes de sua saia. Ele a envolve em beijos que a inundam e abraços que a fecundam.
Rios invadem a terra, purificam e renovam as matas. No entanto, trazem também algumas doenças. Mosquitos se multiplicam e casas são alagadas.
As águas e o poder tornam com o tempo o nosso rei tirano. E a Mãe da Mata cansada de tanta água, afogada em tanto amor, clama pela ajuda de seu amigo anterior, que reunia forças enquanto as Águas reinavam.
O Rei Sol agora mais forte depois da derrota passada desafia o Rei das Águas e almeja recuperar a coroa, assim como os beijos de sua amada.
Secretamente a Mãe da Mata apoia o Rei Sol, pois nada justifica a tirania das Águas.
E assim a Vida continua... E assim a dança nunca termina.

(Um conto sobre a Dança do Amor e da Guerra entre o Sol, a Chuva e a Terra, por Darona Ní Brighid).

É mais ou menos assim que penso e sinto a Roda do Ano em minha região. Adoro o mito de Bríde, Beira e Angus, do Rei Azevinho e Rei Carvalho, de Creudillad, Gwynn e Gwythyr, que retratam a dança e a disputa mística das estações. Mas estou na Amazônia e aqui essa dança assume outras formas e protagonistas, tão belos e sagrados quanto das terras célticas.

Cresci ouvindo que na primeira metade do ano (especificamente a partir de março) é verão, o nosso verão amazônico, tempo de sol, calor intenso e poucas chuvas, momento perfeito para aproveitar as praias e igarapés. E na segunda metade do ano (a partir do final de setembro) é inverno, tempo chuvoso e de rios com águas abundantes.
Quando comecei a estudar paganismo e a ler sobre a Roda do Ano, naturalmente segui a roda norte (festivais pelo hemisfério norte), pois fez (e faz) mais sentido para mim do que a roda sul (pelo h. sul), justamente por toda essa cultura e saber que já nasci embebida. Com o tempo fui conhecendo outros pagãos nortistas que também seguiam a roda norte, apesar de todos os que moram nas outras regiões do Brasil seguirem a roda sul, o que claro, faz todo o sentido para quem vive ali. Há ainda quem siga a roda mista (celebrando os 4 festivais célticos pelo norte, e as estações pelo sul). E o que tenho a dizer sobre isso? Que o Brasil já é diverso em sua cultura, sotaques e crenças, por que não haveria de ser diverso também o Druidismo aqui? Não vejo isso como ruim. Nenhuma religião é homogênea, pois cada indivíduo apesar de compartilhar da mesma crença religiosa, pensa e sente diferente do outro. O próprio planeta é diverso e uno ao mesmo tempo, pois todas as diferenças de região, flora e fauna se reúnem em só lugar, a Terra.
Muitos amigos druidistas não entendiam porque eu celebrava pela roda norte, se estamos em pleno Brasil, no hemisfério sul. Até expliquei as questões do clima, a ideia do verão e inverno amazônico etc. Mas só passando um ano aqui para entender mesmo como é. Pode até dar um nó da cabeça de alguém, mas a cultura celta é cheia de nós mesmo.

11. Ritual

Fogo, água e terra. É o que compõe meu altar quando realizo um ritual. Além disso, há representações e símbolos das Três Famílias que estão sempre ali em cima da mesinha.
Celebro os 8 festivais ao longo do ano, e sempre que possível a lua cheia e também a lua vermelha (menstruação). As celebrações vão desde um ritual relativamente elaborado até um simples ato de meditação/visualização, e isso depende muito de qual celebração seja e da espontaneidade e inspiração que me toca no momento.

Elaborei há pouco tempo duas “liturgias” druídicas, mas ainda as estou “experimentando”. A primeira eu sinto que funciona melhor quando realizada em grupo ou a partir de três pessoas. A segunda pode ser realizada em grupo, mas funciona melhor ainda se realizada sozinho. Sinto também que quanto mais simples as invocações e chamados, ou seja, quanto menos formalidades, ritualismos e “fru-frus” melhor, tanto pros Deuses quanto pra nós mesmos. A musicalidade, o uso de cânticos e músicas sagradas é maravilhoso num ritual, e acho que provocam mais efeitos do que um rito sem música ou canções e só com falas elaboradas e seriedade excessiva. A musicalidade tinha uma grande importância nas culturas celtas antigas e atuais, e não pode ser deixada de fora numa celebração druídica. Além do mais, quem não gosta de boa música?

Celebro outros tipos de rituais também em um ciclo anual, como o aniversário de nascimento da minha avó materna (que já foi para o Grande Mar), aniversário de namoro e casamento, meu próprio aniversário, a lua nova, o nascer de uma flor de uma planta que estava quase morrendo, um banho gostoso depois de um dia quente e cansativo, o deitar na cama quando os olhos já não aguentam de sono, o abraço apertado de alguém amado que há tempos não via, o almoço que reúne a família...
Na verdade, todo dia realizo rituais, pois meus dias são cheios de momentos sagrados, e o ritual nada mais é do que celebrar a vida e a sacralidade nela contida. Ritual, para mim, não é só aquele momento em que acendemos um fogo, chamamos os deuses e lembramos os antigos. Uma meditação/visualização profunda, ou uma batida no tambor para a lua, ou uma libação sincera aos ancestrais, assim como uma prece espontânea e inspirada diante de uma chama ou incenso aceso, é também Ritual, e às vezes essas simples ações têm mais força e magia do que um ritual longo e complexo.

Muitos dizem que não conseguem celebrar os festivais célticos em suas casas, seja por falta de privacidade ou de liberdade. Mas para celebrar um festival ou outro rito não é necessário fazer um ritual com velas, fogueira, diante de um poço sagrado sob a lua e usando uma túnica esvoaçando ao vento... Seria bem legal se desse, mas isso não é estritamente necessário. Estude uns dias antes os mitos, símbolos e costumes relacionados ao festival em questão, marque um dia e tente fazer uma meditação, recitar um poema (de sua autoria ou não) e/ou proferir uma prece dedicada aquele momento sagrado. Para celebrar a vida e se harmonizar à Natureza não precisa muito, basta vontade, concentração, criatividade e inspiração. Por mais que pareça pouco, acredite, isso será muito. Você e os Deuses sentirão...

(imagem do site alfsaga.com)

Termino compartilhando as palavras do sábio e poeta Khalil Gibran, a quem tenho grande admiração.

“E um velho sacerdote disse, Fala-nos da Religião.
E ele respondeu:
Terei falado de outra coisa até agora?
Não será a religião senão todos os actos e toda a reflexão, e tudo aquilo que
não é acto nem reflexão, mas encantamento e surpresa sempre emergentes da
alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou trabalham no tear?
Quem poderá separar a sua fé das suas acções, ou as suas crenças das suas
ocupações?
Quem pode estender as suas horas perante ele dizendo,
"Isto é para Deus e isto é para mim, isto é para a minha alma e isto para o
meu corpo?"
Todas as vossas horas são asas que voam no espaço de um eu para o outro eu.
Aquele que usa a sua moral como a sua melhor indumentária faria melhor se
andasse nu.
O vento e o sol não abrirão buracos na sua pele.
E aquele que rege a sua conduta pela ética está a aprisionar numa gaiola o
pássaro que canta.
Os cânticos mais livres não saem através de grades nem grilhetas.
E aquele para quem a devoção é uma janela, para abrir mas também para
fechar, ainda não visitou a morada da sua alma cujas janelas vão de aurora a
aurora.
A vossa vida diária é o vosso templo e a vossa religião.
Cada vez que entrais nela, entrai por inteiro.
Levai a charrua e a forja, o maço e a lira.
As coisas de que precisais por necessidade ou prazer.
Pois em sonhos não podereis erguer-vos acima dos vossos feitos, nem cair
mais baixo do que as vossas falhas.
E levai convosco todos os homens, pois na adoração não podereis voar mais
alto do que as suas esperanças, nem humilhar-vos mais baixo do que o seu
desespero.
E se quereis conhecer Deus, não pretendais resolver enigmas.
Olhai antes à vossa volta e vê-Lo-eis a brincar com os vossos filhos.
E olhai para o espaço;
Vê-Lo-eis a caminhar sobre as nuvens, de braços estendidos para a luz,
descendo sobre a chuva.
Vê-Lo-eis sorrindo no meio das flores, e depois erguer-se e agitar as árvores
com as Suas mãos.”

(“Sobre a Religião”, do livro “O Profeta”, de Khalil Gibran).

11 de dezembro de 2012

10. Espíritos da Natureza


Sempre que realizamos uma roda de conversa sobre Druidismo num bosque municipal de Belém fazemos uma oferenda ao espírito da árvore que nos acolhe nesses encontros. E nunca nos aconteceu nada de ruim ou inconveniente durante nem depois de cada roda. Todos os lugares, como rios, igarapés, bosques, árvores, pedras, cavernas, têm vida e acolhem vidas. São moradas de diversos seres, visíveis e invisíveis, conhecidos e desconhecidos dos humanos. Alguns desses seres são amigáveis, outros são indiferentes, e outros, porém, são hostis a nós. Por isso é sempre um ato de respeito e prudência deixar uma oferenda a eles e pedir licença ao entrar em suas moradas. Cuidado com as oferendas, não deixe nada que possa poluir o local. Incensos, frutas, mel, leite, chá, flores, são boas sugestões. Eles gostam também de música, boa música (nada de brega, forró, funk... pelo amor dos Deuses...).

Além disso, muitos espíritos da natureza gostam de tabaco e cachaça. Alguns podem ler isso e estranhar, pois não é o tipo de oferendas típicas das culturas celtas, digamos assim, e estamos acostumados a pensar que os espíritos da natureza são as fadas, duendes, gnomos, e que eles gostam de mel, leite e fruta apenas. Tudo bem, chame-os como quiser, mas não podemos esquecer que estamos no Brasil e os espíritos da natureza estão associados a natureza do lugar, óbvio. Portanto, os espíritos da natureza que existem aqui, não são os mesmos que existem lá (Irlanda, Escócia, Inglaterra...), embora possam apresentar muitas semelhanças.

Foi a necessidade de entender esses seres que me motivou (entre outras coisas) a estudar a Encantaria amazônica, as histórias e todo o imaginário relacionado a eles. Nas terras célticas eles são chamados de Sídhe, Povo Nobre, Boa Gente, Povo das colinas, e outras formas. Aqui, na Amazônia, e Pará mais especificamente, são os Encantados, Caruanas, Povo das Águas, Povo do Fundo ou Companheiros do Fundo. Muitos são bons, sábios e possuem grande poder de cura, e por isso auxiliam os pajés e curadores, esses são chamados especialmente de Caruanas e Companheiros do Fundo. Assumem a forma humana, animal ou ambas. Outros, porém, não são tão legais não. Gostam de assustar e testar a coragem dos humanos, provocam doenças que só podem ser curadas com a ajuda de um(a) pajé ou curador(a). Eles geralmente são chamados de Bichos do Fundo (ou somente de Bichos) ou Bichos visagentos, e assumem formas esquisitas, humanas ou não.

Há ainda os encantados que são indiferentes, ou melhor, nem prejudicam nem ajudam os seres humanos, depende do humor deles no dia ou se você fez alguma coisa que os ofendesse, como falar alto e fazer barulho na mata, principalmente nas horas “mágicas” (nascer do sol ou 6 horas, meio-dia, pôr-do-sol ou 18 horas, e meia-noite), deixar lixo pelo caminho, cortar árvores (principalmente se for morada de um deles), matar determinados animais com muita frequência, ou entrar no rio ou na mata sem pedir licença. Gente, é uma questão de bom senso e educação. Ninguém entra na casa dos outros fazendo barulho, sujando ou ofendendo os moradores, né? Então. O problema é que muitas pessoas hoje não tem a consciência de que esses lugares também são casas e que abrigam muitos habitantes. Enfim, na dúvida, se você não sabe se ali residem encantados amigáveis ou não, é melhor não provocar. Entre e saia com respeito e nada lhe acontecerá.

Muitos encantados parecem que querem apenas ser vistos, eles não querem assustar ou malinar (prejudicar, ferir ou provocar doenças) com os humanos, mas apenas serem vistos, ou melhor, reconhecidos. Sinto que alguns se sentem tristes por muitos humanos não perceberem ou ignorarem a existência deles... Sonhei há poucos dias que estava atravessando uma mata com uma pessoa, desconhecida na vida real, mas que era um amigo no sonho. E sentíamos, e também víamos, um encantado que morava ali. Era um menino, negrinho, lembrou-me o Saci, mas não era um, e gostava de cachaça, bombom e leite. Ele nos ajudou a atravessar a mata até chegarmos em um vilarejo (parecido com os que existem no interior paraense), eu resolvia algum problema ali, não lembro o quê e logo voltava para a mata, para atravessa-la e chegar do outro lado, de onde eu vinha. Mas antes de voltar, eu parava em uma barraquinha de doces e comprava um bombom de chocolate e pedia um copo com leite, para deixar ao menino encantado da mata como agradecimento. Mas antes de atravessar a mata eu acordei. Não sei ao certo o que esse sonho quer me dizer, mas sei que os encantados ou espíritos da natureza não devem ser temidos, e sim respeitados ou no mínimo devemos ter uma atitude de prudência e reconhecimento para com eles. Se isso for feito, tenho certeza que nada de ruim lhe acontecerá ou, como a gente diz por aqui, nenhuma malineza lhe farão.

Uma coisa que estava pensando sobre esse tema é que se nós, seres humanos, também somos a natureza e fazemos parte dela, nossos espíritos também são ou serão espíritos da natureza. Não é por acaso que muitos encantados foram pessoas que viveram entre nós, mas que em determinado momento de sua vida “se encantaram”, ou seja, não morreram, e se fundiram misteriosamente e magicamente a um lugar especial (um rio, uma árvore, uma cidade...). Outra coisa é que muitos Deuses e Deusas celtas estão profundamente ligados a um lugar, como Boann está ligada ao rio Boyne, Áine à colina de Knockaine, Macha à Emain Macha, Angus Óg ao Brú na Boinne (Newgrange), etc. Então, eles são de certa forma Espíritos da Natureza também, não são?!

Enfim, viajei um pouco aqui e nem escrevi tudo o que pensei sobre isso, pois não é um assunto tão simples quanto pensamos... A compreensão sobre os espíritos da natureza e a nossa relação com eles são coisas a serem desenvolvidas ao longo de uma vida inteira. E ainda assim, não haverá uma conclusão. Que bom!



Elemental song – Lisa Thiel

Sacred spirit of the mountain
Ancient ones who reside here
We offer you a song of greeting
So that our way may be clear

Sacred spirit of the forest
Ancient ones who reside here
We offer you a song of greeting
So that our way may be clear

Sacred spirit of the water
Ancient ones who reside here
We offer you a song of greeting
So that our way may be clear

Sacred spirit all around us
Ancient ones who reside here
We're asking now for thou blessing
As kindred in the one we are