2100 aC Brú na Boyne, Hibernia
"Ana saiu do abrigo comunal em silêncio, enrolada em camadas
de pele de raposa, só com os olhos de fora -- e mesmo assim o frio lá fora
quase a fez voltar correndo para sua cama perto da lareira central...mas ela se
forçou a sair e fechar a porta, e andou no frio mortal do que restava da Noite
Longa, sabendo que sua família e tribo dormiam acalentados pelo calor do
abrigo, pela comida e bebida, pelas danças e cânticos, e que ninguém acordaria
cedo naquele dia cuja manhã já dava sinais de chegar, ninguém daria por sua
falta por muito tempo, talvez por tempo bastante para ela realizar o que se
havia proposto.
E foi pensando nisso que ela viu que, distraída, havia
chegado à pedra grande e gravada com espirais que marcava a entrada do Monte
Velho -- o lugar que já estava lá quando sua gente chegou das terras do Sul,
ela com quase dois anos olhando do colo da mãe -- o lugar que as crianças
temiam e que os velhos chamaram de sagrado, mesmo que nunca chegassem nem perto
de sua sombra.
Mas ela queria um lugar só para ela, longe do aglomerado de
calor fedido que era a sua tribo no Tempo Frio, e quando a idéia lhe veio ela
não pôde resistir: e foi assim que Ana se esgueirou pela janela de pedra sobre
a porta do Monte, há muito selada, entrando na caverna escura.
À fraca luz do amanhecer, ela viu ossos de pássaros e
lebres, rochas soltas, e um corredor que se embrenhava na escuridão do Monte, e
seguiu por ele apalpando a parede para se orientar.
E foi lá que o raio do Sol nascente a encontrou de surpresa,
enchendo de luz a caverna e tornando tudo dourado à sua volta -- ela ficou ali,
paralisada pela beleza daquela luz que parecia viva, e a voz a sobressaltou
quando a ouviu ressoar na caverna:
"O que você faz aqui, e quem é você?"
Ana viu um menino de pé no meio da luz, parecendo ser da sua
idade, e mesmo sem ver seu rosto claramente soube que ele era bonito.
"Eu pergunto o mesmo para você!" respondeu ela,
que não tinha medo de gente grande ou pequena.
Ele riu um riso de criança, "esta é a minha casa, era
do meu pai, ele me deu, eu dei para a minha mãe, eu venho aqui todo ano visitar
ela"
Ela respondeu, "este é o Monte Velho, meu pai e minha
mãe vivem do lado oposto daqui, eu vim aqui para ficar sozinha e pensar, então
me deixe em paz!"
O menino riu e perguntou, "diga, o que é pensar?"
Ela o olhou com desprezo: "tem um olho dentro da cabeça
que vê coisas que foram, que são, que podem ser; seu burro, ninguém lhe ensinou
isso?"
Ele respondeu muito sério, "Sim, eu aprendi isso, só
perguntei para ver se você sabia"
"Eu sei", respondeu Ana, "os velhos da tribo
dizem que eu penso bem e que vou pensar melhor quando for mais velha"
"Para ver melhor", disse ele, "o olho dentro
da cabeça precisa de mais luz, ele fica fechado sozinho na escuridão --"
"Como esta caverna no Monte Velho!" interrompeu
ela, "que fica fechada no escuro..."
"Até a luz entrar", completou ele com uma risada,
olhando para ela intensamente.
Sem saber como, Ana ficou em frente dele, cara a cara (e
mesmo assim o rosto dele era ofuscado pela luz), e sentiu o toque de um beijo
na testa, quente como o Sol no Tempo Quente...
E foi lá que a tribo de Ana a encontrou três dias depois,
guiada pelos cães de caça, deitada num sono de quase-morte, do qual acordou com
os olhos cegos para o mundo, mas com tamanha clareza de mente que os velhos da
tribo a acolheram entre eles como se fosse uma anciã idosa e não uma menina de
nove anos -- mas nisso, como em tantas coisas, estavam certos, porque aquela
escapada na Noite Longa foi a última travessura da infância de Ana, que até
morrer, e ter as cinzas espalhadas no sopé do Monte Velho, às vezes parecia
ouvir um riso de menino quando a luz do Sol batia em seu rosto".
(Escrito por Endovelicon, em 14/12/13, e publicado em sua página pessoal no facebook).
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