“Esta Terra que pisamos, é gente como nós, é nosso irmão. É por isso que o guarani respeita a Terra, que é também um guarani. O guarani não polui a água, pois é o sangue de um karai. Esta Terra tem vida, só que muita gente não sabe. É uma pessoa, tem alma. A mata, por exemplo, quando um guarani precisa cortar uma árvore pede licença, porque sabe que ela é uma pessoa. A Terra é nosso parente, mas está acima de nós. Por isso ensinamos as crianças a respeitarem a Terra, que até hoje se movimenta, só que não percebemos. Quando os parentes morrem, carne e corpo se misturam com a terra. Por isso, temos que respeitar esta terra e este mundo em que a gente vive” (palavras do velho karai, Alexandre Acosta, da Aldeia de Jataity/RS).
''Somos filhos da
terra cor de urucum. Dos sons do igarapé e da força do jatobá. Das águas do
Araguaia, do Tapajós, do Iguaçu. Somos filhos do sol de Kuaray, da lua de Jaci.
E da chuva que semeia o guaraná, a pitanga e a macaxeira. Somos filhos dos
mitos. Do uirapuru e seu canto, do vento e do pranto. Guerreiros, fortes,
sábios. Somos Ianomâmis, Guaranis,
Xavantes, Caiabis. E o que somos nunca deixaremos de ser” (Zeli Poa).
Xavantes, Caiabis. E o que somos nunca deixaremos de ser” (Zeli Poa).
Nasci no meio da Amazônia, em Belém-PA, e hoje moro no
extremo oeste da região, em Rio Branco-AC. Nunca foi difícil me sentir
conectada com essa terra tão sagrada em que caminho... Ouvia desde pequena
histórias de visagens, encantados e bichos do fundo. Fascinava-me com esses
seres...
Na cidade grande ou no interior (hoje em dia, mais no
interior) era comum depois da janta as pessoas se reunirem na frente de suas casas
e ficarem conversando até de madrugada sobre assuntos diversos, e claro, não
podia faltar as visagens. Histórias de fantasmas de casas antigas, Matintas, Botos,
Iaras, Mãe da mata, Mapinguari, Pretinho da bacabeira, Cobra Grande e tantos
outros seres que surgiam nessas conversas depois da meia-noite. Histórias de gente que sumia
na mata e depois aparecia sabendo um monte de coisas; gente que via mãe d’água
sobre os igarapés; gente que era levada por Iara e nunca mais voltava; moça que
era encantada pelo boto e até engravidava. Histórias e mais histórias dessa minha
terra, da nossa terra, tão sagrada...
Os ancestrais da terra no druidismo são todos aqueles povos
que viveram ou ainda vivem na terra em que nascemos e caminhamos, ou seja, são
os povos nativos ou indígenas que conhecem as plantas da região e sabem seus
poderes, que têm uma larga história de existência e resistência nessa terra.
Eles estão aqui há muito mais tempo do que nós e só por isso já merecem nosso
respeito e reverência. Os ancestrais da terra também são os seres e espíritos
que dão vida à natureza que nos rodeia, os seres e animais das matas, das águas
e dos ares. Irmãos de penas, escamas e patas.
Muitas pessoas estão desconectadas com essa terra, não
conhecem sua história, sua vegetação, suas águas... Muitas pessoas ainda pensam
que os “índios” não existem ou que eles são uns “mortos de fome” brigando por
um pedaço de terra. Quanta ignorância, quanta arrogância...
“Quando os povos indígenas
reclamam o direito às suas terras imemoriais – e eles reclamam basicamente
sempre isto – não é porque tenham sido ou sejam os donos delas. É porque foram,
através dos tempos, os seus habitantes imemoriais. Os seus antepassados tinham
e eles seguem tendo para com ‘aquela terra’ um envolvimento afetivo e simbólico
que escapa à compreensão ocidental de pensamento. No interior da lógica do seu
imaginário, eles não querem de volta o que possuíram. Querem resgatar o que são”
(BRANDÃO, “Somos as águas puras”, p. 34, 1994).
É certo que muitos druidistas sentem profunda sintonia com
as terras célticas, Irlanda, Inglaterra, Escócia, Gales, Galícia... Terras também
sagradas, onde viveram nossos ancestrais de alma. Mas não podemos nos esquecer da
terra em que nascemos hoje. Não podemos ignorar a força que vem desse solo em
que caminhamos. Dos seres que vivem nessas árvores e nesses rios. Das histórias
que são contadas pelos antigos...
Eu sinto minha ancestralidade de uma forma difícil de
explicar em palavras. Algumas pessoas podem ficar confusas e pensarem que faço
uma mistura, um sincretismo[1]
em minha prática religiosa, mas não é isso...
Eu sinto que tenho uma ancestralidade profunda, interna, de alma, antiga com os celtas. E ao mesmo tempo tenho uma ancestralidade presente, de agora, de corpo, à flor da pele com os povos nativos amazônicos, e brasileiros em geral. E procuro equilibrar e celebrar essas ancestralidades em minha vivência espiritual. Acredito que nascemos aqui no Brasil por uma razão importante, estamos AQUI, que tal perceber a beleza que há nessa terra e nas culturas tradicionais e locais de sua região e cidade? Tenho plena certeza que há muito a aprender com elas e muito a compartilhar também.
Ao conhecermos e honrarmos essas culturas, esses saberes, além de aprendermos e crescermos espiritualmente, estaremos fortalecendo-os de alguma forma. Nossa mente, nossos pensamentos e energia dispensados de alguma maneira aos ancestrais da terra irão fortalecê-los, em um nível espiritual e consequentemente material. E eles estão precisando de nosso auxílio...
Acredito que uma prática druídica ou reconstrucionista celta
seja incompleta sem o conhecimento e a honra à sabedoria e cultura locais,
tradicionais. O Druidismo hoje nunca será um reflexo perfeito do passado. E nem
deveria ser ou nem deveríamos nos preocupar DEMAIS em tentar torna-lo. Como uma
religião baseada na natureza, sabemos que ela muda e se transforma com o passar
dos tempos, e é dessa maneira que penso que o druidismo deve caminhar...
Fluindo como as águas de um rio e dançando como as brisas do mar.
Eu não nasci nessa
vida na Irlanda, terra que amo de paixão! Eu nasci no Brasil, na Amazônia, terra
linda, que apesar de maltratada, merece meu respeito e amor. Uma terra mágica,
com seus muiraquitãs, samaúmas, encantarias e os segredos das cerâmicas
marajoaras. Acho que o problema do Brasil e da Amazônia reside exatamente
nisso. Na falta de amor e de cuidado ao olharmos para essa terra. Se a amássemos
não haveria tanta corrupção e descaso, pois esses são sinais de posse e
egoísmo, o oposto do amor. Vejamos o hino do País de Gales:
“Tenho carinho pela antiga terra de meus pais,
Terra de poetas e cantores, homens famosos de renome;
Os seus bravos guerreiros, grandiosos patriotas,
Deram o seu sangue pela liberdade.
Nação, Nação, Defendo a minha nação.
Enquanto o mar guarda a pura e muito amada região,
Possa a antiga língua perdurar.
Antiga Gales montanhosa, paraíso do Bardo,
Cada vale, cada montanha é bela para mim.
Pelo sentimento patriótico, são delícias os murmúrios
Das suas torrentes e rios para mim.
Se o inimigo subjuga a minha terra sob os seus pés,
A antiga língua galesa está viva como nunca.
A musa não foi calada pela repugnante mão da traição,
Nem a melodiosa harpa do meu país”.[2]
Imagine se nós, brasileiros, tivéssemos todos, um sentimento
como esse pela nossa terra? Eu tenho certeza que a realidade de nosso país
seria outra...
Talvez tenha divagado um pouco... (rs)
Enfim, para honrar os ancestrais da terra comece conhecendo
quais são os povos indígenas que habitaram e habitam sua região, procure
informações sobre eles, sua cosmologia, mitologia etc. Descubra se de repente
você não tem alguma ascendência indígena (o que não é difícil no Brasil), e aí
haverá mais um motivo para você conhecer e honrar seus ancestrais.
Ouça os antigos, os mais velhos. Escute as histórias que
eles contam, sejam elas histórias de vida ou de seres encantados. Vá no
interior de sua cidade (ou talvez nem precise) e conheça os curadores,
benzedeiras, rezadeiras, parteiras. Abra sua mente e ouça-os sem preconceito. Veja
quanta sabedoria tradicional eles têm, e o quanto você pode aprender com eles.
Valorize o artesanato local, a música local e tradicional,
os mestres. Tenha em seu altar um objeto associado a algum povo nativo, ou que
faça referência a um que você tenha afinidade. Ou tenha uma parte de sua casa, um canto, uma mesa, uma
prateleira, dedicada aos ancestrais da terra. Aos poucos eles farão parte de
sua vida e de sua espiritualidade. Com sua energia e dedicação oferecidas a
eles, em troca eles lhe oferecerão a sabedoria e os dons que você precisa. E
assim a reciprocidade é estabelecida, e a hospitalidade é respeitada.
(Arte de Alexandre Segrégio)
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