Não
estamos sozinhos no mundo. Não estamos isolados no aqui e agora. Cada um de nós
está interligado ao seu passado e futuro. Somos frutos de nossos antepassados,
pais de nossos pais e mães de nossas mães, e também resultados das escolhas que
tomamos em cada passo de nossas vidas. Na cultura celta e no druidismo hoje, um
dos mais importantes ensinamentos se refere às ancestralidades. As três grandes
famílias são formadas pelos espíritos da natureza, os antepassados e os deuses,
que estão relacionadas aos Três Mundos, Terra, Mar e Céu, mas não estão
limitados a apenas um deles. Essa crença está simbolizada na imagem do triskle
(acima), um antigo símbolo encontrado em diversos artefatos e objetos na
cultura celta, como em pedras, espadas, escudos e jóias. São três espirais que
se movimentam ao redor de um centro, e todas essas espirais estão interligadas
entre si, completando o círculo da vida. Você é o centro, que está conectado as
espirais, recebendo influência e influenciando-as. O centro é também a essência
da Vida, o Espírito, a Grande Canção, onde nascem e se expandem as espirais, e
onde elas se encontram.
Abaixo
veremos uma breve explicação sobre as três grandes famílias ou as três
ancestralidades.
Espíritos da natureza
Refere-se
a todas as formas de vida na natureza. São os espíritos dos animais, das
árvores, rios, pedras, fontes etc. São nossos irmãos de penas, escamas, pêlos,
e tantos outros. São os espíritos da terra, espíritos da região, e podem ser
inclusive espíritos humanos que de alguma forma se integraram na paisagem
natural. Em nossa região amazônica, a sabedoria popular os chama de encantados
ou caruanas, e como exemplos podemos citar o Boto, a Uiara ou Mãe d’água, e
Curupira.
Nós não
estamos separados da natureza, e nem somos tão diferentes desses seres, os
outros animais. Nós somos natureza também. Nascemos da Terra, nosso corpo é
feito dela. Como alguns mitos de outras culturas, como a grega e a judaica, nos
contam que nosso corpo foi criado da lama, ou seja, da mistura da água com a
terra. Estudos científicos apontam que o que nos diferencia dos coelhos ou
macacos, são apenas alguns genes.
O povo
indígena Kamaiurá também pensa dessa maneira, como atesta a antropóloga Carmen
Junqueira, no artigo “Pajés e Feiticeiros” (2004). Ela escreve a respeito de
uma crença desse povo em que os seres humanos e os outros animais falavam, em
um tempo remoto, a mesma língua e todos eram essencialmente semelhantes. A
autora escreve:
“Quando a vida foi criada, todos os seres se
comunicavam numa mesma língua, o que facilitava a união entre espécies
diferentes. E, mais ainda, por trás da aparência diversa residia uma semelhança
niveladora: todos eram uma concretização do fenômeno da vida e, mais, eram
mortais e possuíam uma alma. O fundamento que os animava era o mesmo e a
diferença de aspecto pouco significava” (p. 4).
Em um trecho de uma prece
druídica a Epona, lemos o seguinte:
“Como a terra é
minha carne, pedra os meus ossos, cada erva é meu cabelo, o mar meu sangue, o
Sol é minha pele, minha alma a Lua, as estrelas meus sentidos, minha razão as
nuvens e o vento é minha respiração”.
Logo, nós não só
estamos na natureza, como a natureza está em nós.
Antepassados
Os
antepassados são nossos pais e mães, tios e tias, avós, bisavós, tataravós...
São nossos ancestrais de sangue e a eles devemos nossa vida e a razão de
estarmos na família em que nascemos. Herdamos deles os traços físicos, a educação,
a nutrição, as alegrias e as dores, e uma parte importante de nossa
personalidade. Os celtas demonstravam um profundo respeito para com os antigos,
os mais velhos da família e da tribo, pois eles viveram mais do que nós, viram
mais do que nós e com certeza têm muito a nos ensinar. Eles representam a
memória não só de uma vida, mas de uma ou mais gerações. O respeito aos mais
velhos, e consequentemente a tradição e ao passado, é uma das coisas mais
importantes que o druidismo ensina, e que nossa sociedade hoje mais precisa
aprender. Lembrar de nossos antepassados, aqueles que já foram para o Outro
Mundo e as ilhas além do Mar, respeitar sua memória, e não nos esquecer dos
laços que temos com eles, são atitudes que devemos manter sempre.
Mas,
não temos como nossos antepassados apenas os do laço sanguíneo. Há também os
antepassados espirituais, ligados a nós, não com laços de sangue, mas de
afinidade espiritual. Como druidas/druidesas e druidistas (ou politeístas
celtas) temos como nossos antepassados os druidas e celtas antigos, que viveram
séculos antes de nós, em terras distantes da nossa (como no nosso caso), mas
que ainda assim nos influenciam e nos despertam o interesse e afinidade
profunda por sua cultura e espiritualidade. São os povos gaélicos, gauleses,
bretões, galeses e galaicos que viveram nas terras que chamamos de célticas
(Irlanda, Escócia, Inglaterra, França, Galícia...), e que deixaram na história
da humanidade profundas marcas de sua cultura, e nos inspiram hoje a
(re)construir sua cultura e religião.
Deuses
Os
deuses e deusas são os ancestrais mais antigos que temos. Viveram em um tempo
em que o próprio tempo ainda não existia, e a Terra como a conhecemos ainda
estava se formando. Os consideramos deuses porque são extremamente antigos,
conhecem o(s) mundo(s) em profundidade, suas forças e seus mistérios, e por
isso têm poder, porque eles são as forças do mundo, eles exprimem as forças da
natureza. Muitos deuses ou deusas têm sua morada ou seu corpo formado por um
rio, montanha ou colina. Alguns deuses podem ser os próprios ancestrais de uma
tribo celta, que o viam como um antepassado primordial, que poderia descender
mesmo de uma divindade. Se entendermos por essa forma, veremos que os deuses e
deusas são nossos antepassados também. São nossos Pais e Mães primordiais e,
portanto, nossa família mais antiga. A diferença é, além da ancestralidade, a
enorme sabedoria que eles possuem, e também a imortalidade. No texto
“Ensinamentos de Fintan”, de Bellovesos, encontra-se uma concepção muito interessante
de imortalidade, e é dessa forma que compreendemos o que é ser imortal.
“A água cai do
céu, corre pela terra nos leitos dos rios, descansa nos lagos, sobe nas altas
ondas dos mares, retorna ao firmamento atendendo ao chamado do Sol e, quando a
brilhante Grēnā assim determina, vem outra vez fazer fértil a terra. A árvore
cobre-se de brotos na primavera, seus frutos amadurecem no outono, o inverno
deixa-a nua e coberta de neve à espera de uma nova primavera que virá no
círculo sem fim das estações. Os livros que vocês trouxeram falam de pecado,
punição e morte. Não os li, não me interessam. Li o mundo. Em meu livro, a
morte é porta que se abre para outro nascimento, inseparável da vida exatamente
como a noite leva a um novo dia. Está escrito no mundo: tudo é passageiro na
roda que começou a girar antes que o tempo existisse, que não deixará de seguir
seu curso antes que o tempo acabe, pois somente aquilo que nasce dentro do
tempo pode dentro dele ter fim. Imortal porque sempre renovado, vivo como o
mundo vive. Por isso tornei-me testemunha de todos os reis.” (Ensinamentos De
Fintan, por Bellovesos).
Deuses,
antepassados e espíritos da natureza. Essas são as nossas grandes famílias.
Todas interligadas entre si e conectadas a nós. Entre esses laços deve haver
sempre honra, respeito e hospitalidade, e isso deve ser ensinado aos nossos filhos
e aos filhos deles, pois hoje somos nós lembrando dos ancestrais e
antepassados, mas amanhã nós é que seremos lembrados como antepassados de
alguém ou de uma geração. Nas palavras do druida Marcos Reis (do Caer Tabebuya):
“Se
deixe levar pelo sangue e ele te mostrará um caminho antigo, de nomes
esquecidos, batalhas ganhas e perdidas e assim, o Rio se faz em você, e para
onde ainda irá percorrer em um mundo que amanhã será ancestral de alguém”.
Meditação com os Ancestrais:
Feche os
olhos, respire fundo três vezes. Veja e sinta a Terra sob seus pés, o Céu acima
de você, e o Mar ao seu redor. Veja uma luz descendo do Céu tocando sua cabeça
até seus pés, preenchendo seu corpo. Veja uma luz saindo do coração da Terra,
subindo por seus pés e chegando até a cabeça. Veja uma luz vinda do Mar, azul e
profundo, que te rodeia e preenche seu corpo totalmente. Então veja as três
luzes se encontrando no seu coração, no seu centro, e formando uma espiral de
luz e força. Respire fundo...
Agora
veja uma árvore bela e grande. As suas raízes são fortes e se afundam no mais
profundo da terra e bebem de uma água pura e cristalina. Veja na base da
árvore, nas raízes, a sua família, seus parentes próximos e distantes, seus
antepassados, aqueles que já se foram, e aqueles que você não conheceu nessa
vida, os antigos celtas, com seus mantos quadriculados e coloridos, segurando
lanças e escudos, harpas e flautas. O tronco da árvore é forte e saudável,
coberto de musgo e flores. Veja no tronco da árvore todos os seres que te
rodeiam, os seres de pele, de escama, de penas e folhas, os seres que voam, que
andam, nadam ou rastejam. Veja a natureza como um todo, os rios, as florestas,
montanhas, e sinta como há vida em tudo isso, como a natureza e os seres pulsam
vida e energia. Você vê agora a copa da árvore, os seus galhos são fortes e
altos que alcançam o céu e podem tocar o sol, a lua e as estrelas. Veja na copa
da árvore os Deuses, os Imortais, as Forças que regem a natureza, veja Taranis,
Dagda, Morrigan, Brighid, Lugh, e outros deuses a quem tens devoção.
Veja a grande
árvore, veja as três grandes famílias. Agora perceba que a árvore é você. Você
é a árvore. E as três grandes famílias, os Ancestrais, estão ligados a você, e
você a eles. Mantenha fixa essa imagem. Agradeça e honre. Respire fundo. E abra
os olhos.
(Texto utilizado na roda de conversa sobre Druidismo em maio de 2012, em Belém-PA)
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